terça-feira, 2 de maio de 2017

“Na Terra e no Mar, Pescadores e Quilombolas na Luta!”: Um Estudo Antropológico sobre a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé.



“Na Terra e no Mar, Pescadores e Quilombolas na Luta!”: Um Estudo Antropológico sobre a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé.


Por: Samyr Uhuru[i]


RESUMO:
O presente estudo teve como objetivo investigar as estratégias metodológicas e organizacionais da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, com vistas a compreender a relação entre os processos de mobilização, organização política, atuação em rede de movimentos sociais e a configuração de uma identidade coletiva e individual. Neste estudo, buscou-se aplicar uma pesquisa qualitativa, especificamente a etnografia, pois este método nos ajuda a compreender elementos de relação política e metodológica da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, consequentemente, novas perspectivas de conhecimentos da mesma. Acredito na possibilidade de uma etnografia pós-colonial e anti-imperialista que permite um deslocamento intercultural, um diálogo profundo entre as partes envolvidas (pesquisador e pesquisado), e uma relação sem a ideia de autoridade etnográfica, onde os subalternizados narram as suas subalternidades.

Palavras-chave: Articulação, Comunidades Tradicionais, Movimentos Sociais, Redes de Movimentos Sociais.


1- INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objetivo investigar as estratégias metodológicas e organizacionais da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, com vistas a compreender a relação entre os processos de mobilização, organização política, atuação em rede de movimentos sociais e a configuração de uma identidade coletiva e individual. A Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé surgiu no ano de 2007, no contexto da problemática do fenômeno da Maré Vermelha, fenômeno que provocou a morte de toneladas de peixes e mariscos na região, contribuindo para o aumento das dificuldades encontradas pelos pescadores (as) e quilombolas da região. Desde o início, teve como propósito defender os recursos naturais existentes na região, compreendendo a importância do território para a reprodução física e cultural das populações atingidas. A Articulação surge de uma necessidade organizacional das comunidades pesqueiras e quilombolas que tem uma relação profunda e histórica com o rio Subaé, o qual corta a cidade de Santo Amaro da Purificação (BA),passando pelo município de São Francisco do Conde (BA) e deságua na Baia de Todos os Santos. Fazem parte atualmente da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé as comunidades quilombolas e pesqueiras de Cambuta, São Braz, Acupe, Dom João e Monte Recôncavo. Todas estas comunidades são localizadas na região do Recôncavo da Bahia.
O meu interesse por este estudo surgiu da relação de anos com as comunidades que fazem parte da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé e das minhas vivências com as lideranças das referidas comunidades. O meu primeiro contato com a articulação foi através do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), onde eu fui estagiário durante dois anos, de 2007a 2009. Nestas experiências, pude conhecer de perto as realidades dos pescadores (as) e quilombolas desta região e os conflitos socioambientais existentes nestas comunidades. Por “conflitos socioambientais” entendemos: “Aqueles conflitos envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significado do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais do meio que desenvolvem ameaçadas por impactos indesejáveis – transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos –decorrentes do exercício das práticas de outros grupos.” (ACSELRAD, 2004, p. 26).
Pude conhecer também como se organizavam enquanto sujeitos políticos e como se articulavam na perspectiva de luta/enfrentamento aos conflitos, participando enquanto militante do Movimento Negro e parceiro na luta contra-hegemônica da articulação. Também como militante e parceiro, tenho construído coletivamente com as lideranças formas e estratégias de luta, na perspectiva de rede de movimentos sociais, como articulador que fazia o diálogo entre a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé e a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – através do Grupo de Pesquisa e Estudos Memórias, Processos Identitários e Territorialidades no Recôncavo da Bahia (MITO) e do Núcleo de Negras e Negros Estudantes da UFRB (Akofena). Tenho procurado, com isto, gerar e consolidar redes de confiança e espaços de convergência permanentes entre a Universidade e o movimento social, possibilitando a efetivação da pesquisa militante. Compreendo como Pesquisa
Militante:


“As experiências no campo da Pesquisa Militante, em geral, rechaçaram a dicotomia entre sujeito e objeto de pesquisa, logrando estabelecer processos mais horizontais com as coletividades, movimentos sociais e organizações políticas. Um processo desafiante que exige a democratização e a coletivização de todo o processo de pesquisa, incluindo a escolha do tema, o desenho da pesquisa, os métodos e as ferramentas a serem utilizadas, as reflexões, as ações, os resultados e, inclusive, as publicações. Este deve ser um caminho dialógico e aberto, no qual os movimentos sociais e as coletividades deixam de ser meros objetos de estudo a serem observados de maneira distante e neutra e passam a ser considerados sujeitos produtores de conhecimento legítimo e participantes ativos na construção do saber científico”(JAUMONT, 2016, p. 418).



A minha pesquisa, por motivo do meu engajamento com a luta da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, se classifica muito bem como pesquisa militante ou engajada. Uma pesquisa que exige do pesquisador não somente a observação e a vivência de lugares pesquisados (observação participante) como também uma atuação nos mesmos ou junto aos mesmos.
Entendo a Articulação Subaé como uma estratégia utilizada por comunidades que enfrentam as investidas do capital financeiro especulativo com a sua perspectiva de desenvolvimento, com empreendimentos que afetam o meio ambiente e o modo de vida dos pescadores (as) e quilombolas, trazendo graves impactos aos recursos naturais, assim como apropriação e modificações do território. Neste sentido, são levantadas as seguintes questões a serem analisadas no decorrer deste trabalho: quais as estratégias metodológicas de lutas e enfrentamento da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé em relação aos impactos socioambientais causados pelas investidas do capital com os seus empreendimentos nas suas comunidades? Como as reações da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé se transformam em representações discursivas identitárias e como nas interações políticas intermovimentos articulam discursivamente estas representações, criando identidades transversais e formando articulação de movimentos sociais? E, como a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé desenvolve o processo de mobilizações, de forma articulada, que permitam construções de pautas políticas emancipatórias?
Para responder tais questionamentos a hipótese provável é que a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé diante dos conflitos e impactos socioambientais nas suas comunidades vêm criando estratégias de enfrentamento, utilizando de vários mecanismos de luta, se organizando internamente com formações das lideranças, construindo mobilizações e dando visibilidade a sua luta e as problemáticas enfrentadas pelas mesmas. Usam da estratégia de aliança com outros grupos e se articulam em redes de movimentos sociais. Pois as redes aproximam e criam espaços interorganizacional de trocas simbólicas e materiais entre os sujeitos políticos. Utilizam da tecnologia como a internet para se articularem, trocarem informações e sensibilizar outros grupos ou pessoas com as lutas da articulação. Compreendo a internet como tecnologia que possibilita a difusão das narrativas e os ideários construídos pelos pescadores (as) e quilombolas que permite desenvolver o processo de mobilizações, de forma articulada, com visibilidade e impactos midiáticos para além do espaço local.
Das referencias que utilizo na pesquisa estão presentes Ilse Scherer-Warren e Alberto Meluci como principais autores para a discussão dos conceitos de Movimentos Sociais e Redes de Movimentos Sociais. Melucci (1996) nos mostra o movimento social como uma forma específica de ação coletiva que dialoga com orientações e campos de ação de diferentes tipos, e organiza modelos de ação que envolvem vários níveis da estrutura social. Assim, os movimentos sociais emergem nos campos da vida social marcados por conflitos sociais, quando os indivíduos e grupos estão sujeitos a pressões para absorver no comportamento do cotidiano as exigências e as regras do sistema.
As redes, de acordo com Melucci (1999), são constituídas por grupos que se caracterizam pela ligação múltipla, pela militância parcial e efêmera e pelo progresso pessoal e solidariedade afetiva como requisitos para atuação. Desta forma, o conceito de redes permite ir além das exigências de delimitação de uma área específica, estendendo a análise para a articulação dos atores sociais. Ainda segundo Melucci (1999), as redes de movimentos sociais são espaços onde os grupos partilham suas experiências de movimento e partilham identidades com organizações “formais” e “informais” que estabelecem relações com outros grupos e indivíduos a uma área de participação mais ampliada. Já para Ilse Scherer-Warren (2000, p. 31): “(...) as redes se referem a um tipo de relações/articulações sociais que sempre existiram, mas que na sociedade globalizada e da informação assumem características específicas e relevantes e merecem atenção especial.” Constitui-se ainda num espaço onde os grupos se articulam entre grupos com a mesma identidade social ou politica, “a fim de ganhar visibilidade, produzir impacto na esfera publica e obter conquistas de cidadania.” (SCHERER-WARREN, 2006, p.14).
Neste estudo, buscou-se aplicar uma pesquisa qualitativa, especificamente a etnografia, pois este método nos ajuda a compreender elementos de relação politica e metodológica da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, consequentemente, novas perspectivas de conhecimento da mesma. Acredito, porém, na possibilidade de uma etnografia pós-colonial e anti-imperialista que permite um deslocamento intercultural, um diálogo entre profundo entre as partes envolvidas (pesquisador e pesquisado), e uma relação sem a ideia de autoridade etnográfica, onde os subalternizados narram as suas subalternidades. A meu ver, este é um método capaz de captar a rede de significados, bem como conceber a Articulação Quilombola e Pescadores Subaé como sujeitos produtores de conhecimentos, valorizando a dimensão da experiência e da prática social. A principal técnica a ser utilizada foi a observação participante, ou melhor, participação observante – pois fazia parte do objeto pesquisado –, que nos permite conhecer e compreender importantes aspectos organizacionais desta coletividade, bem como participar de suas reuniões a fim de compreender de que forma eles vivenciam e atribuem significados ao processo das mobilizações e às redes de movimentos sociais. Foi lançada mão de diário de campo, entrevistas semiestruturadas individuais e coletivas. Os dados foram analisados à luz de uma bibliografia mais geral sobre movimentos sociais e redes de movimentos sociais.
O caminho metodológico que trilhei foi a participação observante nas reuniões e atividades com as lideranças da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé e a realização de entrevistas com as lideranças que compõem a articulação, assim como com representantes do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP). Foram feitas dez entrevistas semi-estruturadas (nove com as lideranças e uma com conselheiro da CPP), sendo os campos etnográficos constituídos de reuniões da articulação e as atividades em conjunto (mobilizações, ocupações, caminhadas. seminários, marchas etc.). Também foram analisados os sites da própria articulação do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), e de outras organizações que pesquisam ou atuam nesta área temática.
Ao perceber que existem poucos estudos que discutem estritamente esse tema na região do recôncavo baiano, compreende-se este estudo como de extrema relevância acadêmica, pois contribuirá para construção de novas perspectivas teóricas a serem refletidas e discutidas na academia, assim como novas referências e amadurecimentos nas construções epistemológicas contra-hegemônicas nas ciências sociais e humanas. Espero ser esta também uma pesquisa de relevância social, pois tenta dialogar e dar conta cientificamente das metodologias/estratégias organizacionais dos movimentos sociais e da realidade conjuntural das comunidades remanescentes de quilombos e pesqueiras do recôncavo baiano, contribuindo para a análise crítica do processo das mobilizações para construções de redes de movimentos sociais.
Diante do exposto podemos esperar que o processo de estudo gerado pela pesquisa provoque reflexões sobre metodologia dos movimentos sociais, articulações em redes de movimentos sociais, identidade, modo de vida, racismo ambiental, justiça e injustiça ambiental, território, dentre outros temas relacionados com o cotidiano das comunidades em relação/articulação às outras comunidades e movimentos. Reflexões que poderão proporcionar as lideranças (sujeitos políticos), uma análise mais aprofundada sobre a importância da participação/mobilização política e da construção de redes de movimentos sociais na luta pelo território/vida e práticas emancipatória.


2- A ARTICULAÇÃO QUILOMBOLA E PESQUEIRA SUBAÉ.


“Chegou a hora de defender o nosso
pedaço de chão. A terra é nossa por
direito, respeite a nossa tradição. A nossa
luta é por terra e água, do litoral ao
sertão. Lutamos por igualdade, com
liberdade garantir o pão.” (Trecho do
Hino da Campanha por território
Pesqueiro).



Falarei aqui sobre o surgimento, estratégias, objetivos e articulações da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, sobre a importância da articulação para os sujeitos políticos (pescadores (as) e quilombolas), que fazem parte dela, e da necessidade de existência da mesma para a manutenção do território ameaçado. Farei uma análise e considerações sobre a estrutura da articulação e sobre as suas estratégias de aliança com outros grupos e participação de redes de movimentos sociais. Utilizarei como base referencial as teorias de Movimentos Sociais e Rede de Movimentos Sociais.
 Entende-se por Movimentos Sociais as ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas da população se organizar e expressar suas demandas (GOHN, 2008). Através dos movimentos constituem-se em sujeitos coletivos e políticos que lutam por transformações sociais, pela construção de novos projetos societários, democráticos e participativos, que tem por fundamentos as categorias de classes sociais, gênero, raça, etnia e geração (TOURAINE, 1994.). Já Rede de Movimentos Sociais podem ser entendidas como uma forma de articulação que viabiliza e fomenta o descentramento das lutas, a horizontalidade e a multiplicidade, bem como a contingência da diversidade, sem se descuidar dos limites enfrentados por toda forma de organização social. Uma forma de articulação entre o local e o global, entre o particular e o universal, entre o uno e o diverso, nas interconexões das identidades dos atores com o pluralismo. (SCHERER-WARREN, 2005.).


2.1- O surgimento/histórico da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé:


Em entrevistas com as lideranças que fazem parte da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé e com o conselheiro do CPP, Gilmar Santos, que acompanha as comunidades participantes, ficou compreendido que a articulação surgiu no ano de 2007, no contexto da problemática chamada “Maré Vermelha”. A “Maré Vermelha” foi uma proliferação excessiva de algas tóxicas avermelhadas que ocorreu nas águas da Baia de Todos os Santos. Este fenômeno matou toneladas de peixes e mariscos na região, contribuindo para o aumento das dificuldades encontradas pelos pescadores e pescadoras. Ainda em 2007, o Conselho Pastoral da Pesca realizou um diagnóstico rápido e participativo identificando que as comunidades pesqueiras da região estavam profundamente vulneráveis do ponto de vista socioambiental e econômico. As comunidades pesqueiras da região do recôncavo têm uma particularidade e especificidade por serem comunidades com múltiplas identidades: são pesqueiras, extrativistas e quilombolas. Sendo assim, é possível entender a multiplicidade da identidade na fala de HALL quando ele nos diz que:


“O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.” (HALL, 2006, p.12).


O ano de 2007 foi marcado pela luta das comunidades junto aos órgãos públicos (IMA, IBAMA, MP, Ministério da Pesca, INSS.), e pela realização de várias ações socioeducativas e formativas com o intuito de contribuir com o empoderamento das lideranças comunitárias pesqueiras e quilombolas, sobre seus direitos trabalhistas e previdenciários. Dentre os objetivos, visava-se superar os problemas relacionados à documentação pessoal (carteira de pesca, inscrição na previdência social, etc.) e comunitária (formalização de associações, estatutos, etc.). Esta era uma meta dado que a maioria das comunidades desconheciam os direitos sociais e a importância dos documentos básicos como condições essenciais para acessar benefícios trabalhistas e previdenciários.


                         “As comunidades pesqueiras da região foram completamente afetadas pela maré vermelha. Não podiam mais pescar e nem mariscar. Os peixes estavam morrendo em grande quantidade. Nós da CPP fizemos um diagnóstico rápido e identificamos esta problemática. Junto com as lideranças acionamos os órgãos competentes e denunciamos. (...) Fizemos também nas comunidades que acompanhávamos no inicio umas formações sobre direitos previdenciários e trabalhistas. Fizemos cursos de multiplicadores e juristas leigos com as lideranças. Estes cursos foram de grande importância para o fortalecimento e o empoderamento das comunidades.” (Entrevista com Gilmar Santos, conselheiro da CPP, 2016).


“Nós estávamos passando muito sufoco depois da maré vermelha. A CPP chegou e nos ajudou bastante com os cursos de multiplicadores e juristas leigos. A partir daí tivemos conhecimentos de alguns direitos que desconhecíamos. Começamos a conhecer outras comunidades que faziam parte do MPP e que tinham problemas semelhantes ao nosso e resolvemos lutar juntos.” (Entrevista com Luis Brito, liderança do Cambuta, 2016).


Em 2008 foi criado o grupo Pró-RESEX (Reserva Extrativista) com as lideranças das comunidades que fazem parte da articulação, e que tinha o propósito de criar uma unidade de conservação que respeitasse a cultura local e a proteção dos recursos naturais existentes. Foi um momento muito intenso de articulação e mobilização tendo em vista a defesa dos recursos naturais existentes na região. Pode-se perceber que os movimentos sociais contribuem para compreensões e interpretações da realidade, empoderando os agentes/atores sociais para uma luta coletiva em redes de movimentos sociais. Segundo Maria da Glória Gohn:


“Os movimentos realizam diagnósticos sobre a realidade social, constroem propostas. Atuando em redes, constroem ações coletivas que agem como resistência à exclusão e lutam pela inclusão social. Constituem e desenvolvem o chamado empowerment de atores da sociedade civil organizada à medida que criam sujeitos sociais para essa atuação em rede. Tanto os movimentos sociais dos anos 1980 como os atuais têm constituído representações simbólicas afirmativas por meio de discursos e práticas. Criam identidades para grupos antes dispersos e desorganizados. Ao realizar essas ações, projetam em seus participantes sentimentos de pertencimento social. Aqueles que eram excluídos passam a se sentir incluídos em algum tipo de ação de um grupo ativo” (GOHN 2011)


Os grupos realizaram muitas reuniões e seminários; foram elaborados alguns materiais didáticos e houve coleta de assinaturas nas comunidades para viabilizar a criação da RESEX. No entanto, infelizmente, o Governo Federal naquele ano (ministro do meio ambiente Carlos Minc), comprometido com interesses empresariais do ramo do turismo, engavetou o pedido de criação da RESEX dando um duro golpe nos processos de mobilização das comunidades.



“A RESEX era pra nós a possibilidade de proteger o nosso meio ambiente. Era um dos meios de proteger o nosso território que estava ameaçado com poluição e desmatamento dos manguezais. Ficamos sabendo sobre a RESEX e sobre a sua importância numa reunião aqui em Cambuta. A partir dos conhecimentos sobre a RESEX, tivemos a ideia de construir uma aqui na nossa região. Começamos então a estudar mais sobre como construir uma RESEX. Começamos a fazer varias reuniões e seminários conjunta com as lideranças de Acupe e São Braz.” (Entrevista com Paulo Sergio, liderança do Cambuta, 2016). “Poxa... foram muitas reuniões mesmo! Fazíamos reuniões e seminários em todas as comunidades daqui da região de Santo Amaro. Fizemos todos os procedimentos e enviamos o pedido para o órgão responsável. Mas foi engavetado pelo ministro da época.” (Entrevista com Luis Brito, liderança do Cambuta, 2016).



Neste mesmo ano as lideranças das comunidades e o CPP tiveram acesso a informação de que um grupo empresarial (Property Logic), havia manifestado interesse em se apropriar da Ilha de Cajaiba para construir um mega empreendimento turístico. As lideranças conjuntamente com o CPP passaram a aprofundar os processos de formação política e de articulação para garantir a preservação da ilha, importante espaço de reprodução física e cultural das comunidades pesqueiras e quilombolas da região. Nesse contexto, já existia uma relação forte das comunidades desta região que seriam afetadas com o empreendimento com outras comunidades pesqueiras e quilombolas do recôncavo _ as quais estavam afirmando sua identidade como remanescente de quilombos _ através do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais.



“Nós ficamos sabendo de uma articulação para construção de um eco resort na Ilha de Cajaiba pelo grupo empresarial Property Logic. A ideia era construir um mega empreendimento na ilha. Um mega empreendimento mesmo. Com espaço reservado para prática de Windsurfes, jet-ski, caiaques, veleiros etc.) Isso acabaria resultando em prejuízos para os pescadores e pescadoras da região. E eles acabariam com os manguezais e a floresta atlântica. Diante destas informações e preocupações, decidimos aprofundar sobre a problemática e cair pra cima.” (Entrevista com Gilmar Santos, conselheiro da CPP, 2016). “Ficamos abismados e preocupados depois desta informação da construção do Eco Resort. Pois todos nós usamos a ilha. Tanto para pescar como para o extrativismo. Quando saímos para pescar a noite passamos o tempo frio esperando o momento de ir puxar a rede no sobrado. E na época de frutas como cajá, etc, a gente sai para catar as cajás. Aquele lugar é de grande importância para nós! Depois desta noticia... fizemos varias reuniões, vários encontros com os companheiros e companheiras de outras comunidades e do MPP. Foi uma mobilização retada.” (Entrevista com Paulo Sergio, liderança de Cambuta, 2016).



As comunidades da articulação passaram então a refletir sobre a identidade étnicoracial, sobre a história de resistência negra e sobre a importância do território tradicional para a sua reprodução física e cultural. Logo as três principais comunidades da articulação, Acupe, Cambuta e São Braz – depois as comunidades D. João e Monte Recôncavo vieram fazer parte da articulação -, passaram a incidir sobre a Fundação Cultural Palmares e conquistaram a certificação quilombola paralelo a um intenso processo de luta contra a empresa Property Logic. Foram muitas audiências e reuniões com os órgãos ambientais e também com os Ministérios Públicos Estadual e Federal no sentido de denunciar as ameaças que o empreendimento turístico poderia trazer às comunidades, bem como exigindo que o poder público assegurasse a efetivação aos direitos enquanto comunidades remanescentes de quilombos, conforme previsto na constituição federal.


“Entendendo o grande problema que seria para todos nós este empreendimento, percebemos que tínhamos que nos mobilizarmos e criarmos estratégias para garantirmos a nossa Ilha de Cajaiba. Não podíamos perder o nosso espaço de sobrevivência. Então começamos a conhecer outras comunidades pesqueiras que faziam parte do MPP se autodeclarando quilombolas. Começamos a estudar sobre o tema e percebemos que tínhamos todos os traços de uma comunidade quilombola e nos autodeclaramos quilombolas também. E com esta certidão quilombola em mãos fomos para cima dos órgãos responsáveis para garantirmos o nosso território. E a ilha de Cajaiba faz parte dela também.” (Carla Bastos, liderança da comunidade São Braz, 2016).


Após muitos embates com o empreendedor, as comunidades conseguiram suspender a realização do nocivo empreendimento turístico que estava previsto. Este fato ficou marcado na memória daquelas lideranças que com muita ousadia e coragem conseguiram defender seus territórios tradicionais. Isto fortaleceu a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé que teve força para continuar a lutar contra outras tentativas empreendedoras e governamentais de destruir os seus territórios, tal como o projeto da monocultura do eucalipto que está vindo com muita força para a região.


2.2-Processo organizacional da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé:


A Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé surge de uma necessidade organizacional das comunidades pesqueiras e quilombolas que têm uma relação profunda e histórica com o rio Subaé ou que são da região circunvizinha, assim como da necessidade de promover uma articulação para luta de forma coletiva regional. Acredita-se na importância da união das forças numa empreitada contra as problemáticas socioambientais comuns, na tentativa de defender os seus territórios tradicionalmente ocupados da cobiça capitalista e proteger também os recursos naturais mantendo assim o seu modo de vida.


“A articulação surge com o objetivo de unir as comunidades locais. Unir as comunidades quilombolas e pesqueiras daqui da região. Pois acreditamos que só através da união da gente que podemos conseguir resolver os nossos problemas. Pois juntos somos mais fortes. Pois a elite se organiza muito bem e são bem unidas para destruir a gente. Temos que fazer o mesmo para nos defender e defender o nosso território.” (Thico, liderança da comunidade Acupe,2016).


“Ou nos organizamos para defender o que é nosso filho... perderemos tudo! Por isso temos que nos articular com outros grupos e comunidades para ficarmos fortes o suficiente para destruirmos o mal.” (Carla, liderança da comunidade São Braz, 2016).


Fazem parte atualmente da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé as comunidades de São Braz, Cambuta, Acupe, D. João e Monte Recôncavo. Todas estas comunidades são localizadas na região do recôncavo da Bahia e são comunidades quilombolas e pesqueiras. As comunidades remanescentes de quilombos São Braz, Acupe e Cambuta são pertencentes à cidade de Santo Amaro. As comunidades remanescentes de quilombos D. João e Monte Recôncavo são pertencentes à cidade de São Francisco do Conde. As duas cidades – Santo Amaro e São Francisco do Conde – são cidades vizinhas. Todas elas utilizam de formas coletivas e tradicionais os mesmos recursos naturais da Ilha de Cajaiba.
A articulação iniciou-se com as três comunidades de Santo Amaro (Cambuta. São Braz e Acupe). Todas as três eram acompanhadas pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e também faziam parte do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais. As comunidades de São Francisco do Conde (D. João e Monte Recôncavo) começam a fazer parte da articulação alguns anos depois, quando o CPP e o MPP têm informações sobre estas comunidades por outros pescadores da região e assim sentem a necessidade de se aproximar das mesmas. Desde então estas comunidades passam a fazer parte da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé e, consequentemente, passam também a fazer parte do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais.


“Inicialmente a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé tinham três comunidades, a comunidade Cambuta, São Braz e Acupe. Pois nós do CPP só acompanhávamos neste momento estas comunidades. Não tínhamos informações e nem diálogo com estas comunidades ainda. Com as informações e conhecimentos das mesmas, passamos a manter um contato até que as comunidades D. João e Monte Recôncavo aceitaram a participar da Articulação e do MPP.” (Gilmar, conselheiro do CPP, 2016).


O processo organizacional da articulação funciona da seguinte forma: a) Reuniões bimensais e itinerantes: as reuniões ordinárias funcionam a cada dois meses, podendo existir alguma reunião extraordinária a qualquer momento dependendo da necessidade. Cada reunião é feita numa comunidade diferente que faze parte da articulação; b) São construídos pela articulação fóruns de discussões para refletir sobre a conjuntura e problemáticas que os atingem. Podem ser problemáticas coletivas (que atingem todas as comunidades), como por exemplo, a construção do Eco Resort na Ilha de Cajaíba, que iria afetar todas as comunidades – ou problemáticas particulares (que afetam somente uma comunidade), como por exemplo, a demarcação do território pelo INCRA; c) São construídas deliberações de mobilizações e formas de enfrentamentos a partir das demandas particulares ou coletivas, construindo de forma coletiva e horizontal as estratégias de lutas e enfrentamentos; e, d) Cada comunidade
participante da articulação faz sua reunião interna, na sua sede, levantando as problemáticas e estratégias de embate levando as para a reunião da articulação, construindo assim uma agenda de luta, mobilizações e atividades coletivas.


“Nós nos organizamos em reuniões a cada dois meses, as reuniões são rotativas. Ou seja, cada reunião é numa comunidade diferente. Nós levantamos os problemas de todas as comunidades e criamos formas de combater estes problemas de forma coletiva.” (Thico, liderança da comunidade Acupe, 2016.).


“Temos reuniões nas nossas próprias comunidades, levantamos os problemas da nossa comunidade e levamos para a reunião do coletivo. E lá construímos as mobilizações e ações onde forem necessárias.” (Lolô, liderança da comunidade Cambuta, 2016).


A Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé tem como estratégias de luta a articulação em rede com outros movimentos sociais ou grupos de mesma identidade social ou política. O principal objetivo é unir força contra a primazia do mercado sobre os direitos humanos – que é a principal causa da desigualdade, da discriminação e da degradação ambiental. Articulam-se atualmente com AATR, AKOFENA, MITO e GEOGRAFAR; e com outras comunidades quilombolas e pesqueiras que fazem parte ou não do MPP.



“Temos articulação com a AATR, MITO, GEOGRAFAR e vocês do Movimento Negro.” (Carla, liderança da comunidade São Braz, 2016.). “Nós nos articulamos com outros grupos e movimentos sociais. Isso é importante!! Nós, por exemplo, nos articulamos com vocês da UFRB. Se não fosse esta articulação algumas atividades nossas não seriam possíveis. Nos articulamos com todos os movimentos sociais que for necessário. Pois quanto mais grupos unidos, mas visibilidade e forças teremos para a guerra. Temos parcerias com a AATR, com vocês da universidade/UFRB e com o pessoal da UFBA.” (Paulo Sergio, liderança da comunidade Cambuta, 2016.).



A afirmação das lideranças sobre a importância da articulação e do diálogo com outros grupos ou movimentos sociais faz perceber o que a autora SchererWarrer acertadamente propõe em sua análise dos movimentos sociais em termos de redes. Ela afirma a necessidades de articulações entre: “as formas de articulação entre o local e o global, entre o particular e o universal, entre o uno e o diverso, interconexões das identidades dos atores com o pluralismo” (1999, p. 27). Segundo esta perspectiva, é preciso compreender os Movimentos Sociais inseridos no contexto do século XXI, no qual “surge um número cada vez maior de movimentos de caráter transnacional, como os direitos humanos, pela paz, ecologistas, feministas, étnicos e outros” (1999, p. 27). Estes movimentos emergentes são a síntese articulatória de vários submovimentos identitários (2007, p. 45), que se conectam por meio de redes e são o resultado de todo um processo articulatório, entre os vários níveis, de como os interesses e os valores da cidadania se organizam em cada sociedade.
São construídas pela articulação formações, capacitações e cursos para as lideranças com o intuito de empoderar a base e buscar novos quadros para a articulação e consequentemente para o MPP. Busca-se, assim, autonomia para resolver alguns problemas burocráticos como conhecer os seus direitos previdenciários, e criam-se também formas de autogestão e mecanismos para buscar recursos/renda para articulação e comunidades. Como exemplo disto pode se citar o projeto de turismo de base comunitária, onde são criados roteiros coletivos que passam por todas as comunidades, e as cooperativas.
Para forma de comunicação e mobilização são utilizadas as ferramentas tradicionais dos movimentos sociais (reuniões e panfletagens), e são usadas também as ferramentas modernas da internet como as redes sociais (facebook e whatsapp) – que são formas rápidas de comunicação contemporânea – articulando se e fazendo reuniões através estas ferramentas.


“Usamos como formas de comunicação e divulgação das atividades além das reuniões a internet – as redes sociais – facebook e whatsapp. Estamos nos tempos modernos né não?! Temos que usar estas ferramentas mesmo. E ainda é mais prático. Resolvemos alguns problemas por eles mesmos. Todo mundo tem um celular com estas tecnologias.” (Carla, liderança de São Braz, 2016.).


“Temos grupos no whatsapp e temos grupo também no facebook. Não só a articulação que tem. Todas as associações quilombolas e o movimento dos pescadores também tem. É de extrema importância nos dias de hoje.” (Thico, liderança da comunidade Acupe, 2016.).


As afirmações das lideranças, agora com a ideia do uso das tecnologias de comunicação modernas – a internet –, nos remetem às afirmações de SchererWarren quando nos fala no seu texto que:
           

“Tanto o movimento altermundialização quanto as redes de movimentos específicos têm se beneficiado desses recursos, não só para a comunicação inter-rede, mas também na construção de uma rede de simpatizantes, de solidariedade e na formação de uma opinião publica mundial e (ou) latinoamericana, a partir de uma sociedade civil crítica.(...) as novas tecnologias, especialmente a internet e as rádios comunitárias, são um elemento facilitador na difusão das narrativas e ideários em construção pelos sujeitos (...).” (SCHERER-WARREN, 2008, p. 513.).


Percebe-se, então, que além de ser um espaço de luta, intercâmbio e formação política do MPP, a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé é um espaço onde as comunidades refletem sobre a conjuntura e traçam estratégias de luta em defesa dos seus territórios, direitos e políticas públicas. É espaço de estratégia de ação coletiva, baseada numa cultura solidária, cooperativa, horizontalizada e mais democrática, para uma nova forma de organização da
sociedade. E que articula “a heterogeneidade de múltiplos atores coletivos em torno de unidades de referências normativas, relativamente abertas e plurais.” (SCHERER-WARREN, 2008, p. 515.).


2.3- Reunião de Rearticulação da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé:


Durante algum tempo a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé tinha dado uma parada nas suas atividades (reuniões, mobilizações, formações etc.). A última reunião ordinária tinha acontecido no mês de maio do ano de 2015, na comunidade D. João, em São Francisco do Conde. Esta parada das atividades foi motivada por problemas na mobilização interna nas comunidades e animação das bases, consequentemente pela falta de pessoas dispostas a participar das reuniões – tanto internas (na comunidade), quanto externas (da
articulação). Tendo assim uma baixa na participação e déficit na construção de novos quadros de militantes.
Com as paradas das atividades da articulação, vários problemas foram se agravando e se acumulando, enquanto outros novos problemas foram aparecendo, tais como: a demora do INCRA em fazer a demarcação dos territórios quilombolas; construções de muros nas ilhotas de Acupe – as ilhotas são umas das poucas áreas de lazer que a comunidade tem; as construções de estradas na Ilha de Cajaíba e o plano urbanístico da Ilha de Cajaíba apresentado pela a prefeitura de São Francisco do Conde – uma nova proposta de empreendimentos na Ilha; enquanto o projeto de turismo de base comunitária ficou parado.
Diante das problemáticas, as lideranças perceberam a necessidade de rearticulação da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé. Agendaram uma reunião para se reorganizarem enquanto articulação que aconteceu no dia 22/03/2016, na comunidade de Acupe, às nove horas da manhã. Os pontos de pauta da reunião foram: 1) Avaliação e reorganização da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé; 2) Retomada do projeto de turismo de base comunitária; e, 3) As problemáticas das Ilhotas de Acupe.
A reunião, em que eu participei a convite do CPP, foi iniciada com a leitura de um texto do Papa Francisco pela liderança de São Braz, Carla. Após a leitura, passamos para a primeira pauta (avaliação e reorganização da articulação). Foi colocada pelas lideranças a importância da retomada das atividades, trazendo em memória as conquistas e lutas que ocorreram através da articulação das comunidades. Ficou decidida a retomada das reuniões para começar a pensar estratégias para os enfrentamentos que estão por vir. As reuniões deixaram de ser bimensais para serem mensais – pois havia um ano sem que acontecessem as reuniões e as comunidades estavam cheias de problemas para serem resolvidos imediatamente.


“Não podemos deixar que a articulação acabe. Ela foi e é muito importante para todos nós. Ela foi e é importante para as nossas comunidades. Lembrome de todas as atividades e conquistas que conseguimos de forma coletiva. Isso mostra a força da nossa união e a necessidade de continuarmos na luta de forma coletiva.” (Carla, liderança da comunidade São Braz, 2016.).


“Lembro-me das reuniões, formações e mobilizações que fazíamos. Tinha um poder imenso a nossa articulação. Não podemos desistir agora. Temos que voltar com as atividades e nos reorganizarmos. Pois os problemas só aumentam se ficarmos parados.” (Thico, liderança da comunidade Acupe, 2016).


“Eu já estava com saudades destas reuniões. Precisamos sim dar continuidade na articulação. Foi com ela que conseguimos barrar o empreendimento na Ilha de Cajaíba.” (Luisa, liderança da comunidade Cambuta, 2016.).


Passamos para a segunda pauta (retomada do projeto de turismo de base comunitária) logo depois de um momento reflexivo sobre a articulação e de rememoração das ações coletivas, conquistas e lutas. Foi feita a leitura do projeto de turismo de base comunitária. Foram colocadas pelas lideranças as necessidades econômicas para colocar em andamento as atividades do projeto – pois este projeto trará recursos/renda para as comunidades. Foi aprovada com unanimidade a continuidade do projeto e pensadas estratégias para colocá-lo em funcionamento o mais rápido possível.


“As nossas comunidades tem a necessidade de ter este projeto funcionando. Precisamos nos manter economicamente. E este projeto tem tudo para dar certo. Temos lugares lindos que podem ser colocados no roteiro e assim fazermos a nossa atividade e obter recurso tanto para nós individualmente quanto para a articulação.”(Lolô, liderança da comunidade Cambuta, 2016.).


“Não tem com não dar certo. Estou terminando este mês o meu curso de turismo. E acho uma boa podermos utilizar o meu aprendizado para que este projeto caminhe. Estou disposta a me colocar para que este projeto dê muito certo. Já estou até pensando no roteiro.” (Luisa, liderança da comunidade Cambuta, 2016.).


Na terceira e última pauta da reunião, as problemáticas das Ilhotas de Acupe foram colocadas pelas lideranças e colocada a necessidade de se fazer uma ação direta nas ilhotas - já que os órgãos públicos de fiscalização nada fazem. Falaram que as obras dentro das ilhotas pela prefeitura de São Francisco Conde continuam e com avanços. Apresentaram as indignações por não poderem mais utilizar de um dos poucos espaços que eles tinham de lazer. Contaram que estes espaços foram utilizados pela comunidade durante muitos anos e que agora estão ameaçados de nunca mais usufruírem do espaço que é deles por direito.


“Não podemos mais ficar dialogando com o Estado, com os órgãos responsáveis. As nossas ilhotas estão sendo destruídas por aqueles muros. Temos que derrubar aqueles muros. Temos que fazer uma ação logo e coletivamente. Chega de ficar esperando pelos órgãos do Estado. Vamos juntar uma quantidade enorme de pessoas e derrubamos nós mesmo aqueles muros. Já foi confirmado pelos órgão fiscalizadores que aquele empreendimento é ilegal. Então... o que estamos esperando?! Por mim iriamos logo hoje derrubar aqueles muros!” (Sr. Carlos, liderança da comunidade Acupe, 2016).


“É um absurdo aquilo que estão fazendo. É um absurdo não podermos mais usar o nosso espaço. Fico muito triste! As Ilhotas era o lugar que iriamos nos finais de semana jogar bola, tomar um banho, curtir com os amigos e familia. Agora somos impedidos de usar o ue é nosso por direito. Dar uma raiva!!” (Thico, liderança da comunidade Acupe, 2016.).


A reunião de rearticulação da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé foi concluída às 16h00min do mesmo dia. Ficou decidido que a próxima reunião seria na comunidade São Braz, no dia 23/04/2016 as 08h30min. A reunião terminou com um canto indígena que nos fez ter mais certeza da importância da organização, o canto dizia o seguinte: “Pisa ligeiro. Pisa ligeiro. Quem não aguenta com a formiga, não assanha o formigueiro!!” Todos nós saímos da reunião felizes e com muita esperança das coisas serem diferentes a partir daquele dia; acreditando mais ainda na importância, na força da articulação e na necessidade da organização coletiva. Tendo a absoluta certeza nos corações de que nada mais necessária do que a compreensão da filosofia africana da cultura Xhosa, o “UBUNTU – EU SOU PORQUE NÓS SOMOS!!”

2.4- Análise e considerações:


Foi percebida a importância e necessidade dos sujeitos (pescadores (a) e quilombolas), se organizarem e se articularem em defesa dos seus territórios e expor suas demandas materiais e simbólicas. As demandas materiais têm como referências objetivas as exclusões e carências cotidianas dos sujeitos base, neste caso os pescadores (as) e quilombolas, das lutas e são, portanto, histórica e espacialmente referenciadas. Estas demandas se tornam signos e
representações simbólicas através da tradução de seus significados em politicas de cidadania. (SCHERER-WARREN, 2008.). As necessidades materiais são transformadas em representações simbólicas de carências de determinados grupos e, por consequência, são construídas pautas de reivindicações ou transformação a nível social da situação existente. Como nos afirma SCHERER-WARREN:


“No combate a exclusão, apresenta-se a dimensão das condições materiais de existência (desigualdade, pobreza, desemprego, segregação espacial etc.), com a dimensão das condições simbólica de sua reprodução (estigma, discriminação,desvalorização pessoal e coletiva etc.), e como as condições politicas decorrentes (subcidadania, desempoderamento etc.). (SCHERERWARREN, 2007, P. 37.).”


Nos discursos dos sujeitos da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, percebe-se os sentidos coletivos atribuídos às carências e os sentidos da identificação dos mesmos, transformando-os em atores políticos, no processo de transformação destas carências em demandas, destas demandas em pautas políticas e das pautas políticas em mobilizações e protestos. No centro deste processo estão o auto-reconhecimento e a auto-identificação coletiva em torno dos conflitos, dos adversários a serem enfrentados e da construção dos projetos e utopia de mudanças.
Nas estruturas internas organizacionais da articulação – um espaço de sujeitos com perspectivas e compreensão diferentes do mundo –, existe um embate entre o respeito à diversidade de pensamentos e a busca da unidade possível na ação. Cria-se, desta forma, o ideário de horizontalidade organizacional numa perspectiva de irmandade, aproximando a memória histórica da exclusão e da discriminação com o seu legado no presente, fruto desse processo histórico. (SCHERER-WARREN, 2008.). A subjetividade é, neste sentido, construída diante dos sofrimentos na atualidade, permitindo as identidades comuns (pescadores (as) e quilombolas), em torno de uma utopia emancipatória na construção de sujeitos de direitos.


“A releitura da história e a sua tradução em novas referências e ideários que encontram eco no cotidiano dos grupos subalternos criam condições propícias para que eles se relocalizem em relação à herança social de sua condição humana, recuperem e re-interpretem signos culturais (por exemplo o de raça e o de etnia), construam identidades coletivas e se reconheçam mutuamente como sujeitos de direitos.” (SCHERER-WARREN, 2008, p. 513).


Da estratégia de aliança e articulação com outros grupos ou redes de Movimentos Sociais, percebe-se na Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé a criação de um movimento que se diferencia das estratégias dos movimentos tradicionais “revolucionários”, transitando de política “uni-identitária” (pescador ou quilombola), para politicas discursivas de uma maior diversidade (raça, gênero, classe, geracional). Estas novas estratégias atuam nas formas interorganizacionais através da troca de saberes, formando relações de equivalência discursiva (Laclau, 2011). Mesmo face à diversidade e diferença, constroem-se pontes de encontros para projetos de mudança social, extrapolando as fronteiras simbólicas e territoriais e construindo modelos discursivos e de ações politicas baseadas em estruturas de identificações múltiplas, e formas de organização pautadas em identificações híbridas e em formas discursivas múltiplas. Estas estratégias e condição, por um lado, criam tensões e ambiguidades no interior do movimento e das redes, mas, por outro, possibilitam a construção de espaços favoráveis para a construção de alteridade intersujeitos e para praticas democráticas e democratizantes.


3- CONCLUSÃO:


O Recôncavo da Bahia é uma região que se constitui numa das áreas mais antigas do processo colonial escravista, datado do século XVI ao século XIX. Foi a região que mais exportou açúcar e fumo para a Europa, no mercado transatlântico, produzido pelas mãos negras. É uma região com histórico de resistências negras muito fortes, desde rebeliões de escravizados a irmandades negras. Sendo assim, uma região de resistência e majoritariamente negra, cercada por comunidades quilombolas e terreiros de candomblé. Com a expansão do capitalismo global chegaram várias indústrias deletérias para a região, modificando toda a realidade sociocultural e territorial.



“No Recôncavo, a expansão do capitalismo global teve como consequência, além da expansão de polos petroquímicos e a consequente restruturação fundiária e de mão de obra da região, a chegada de indústrias altamente poluentes na região. A transferência deste tipo de indústria de países centrais para lugares dos países e regiões periféricas onde a mão de obra era barata e vulnerável, geralmente populações étnicas minoritárias, e onde os poderes nacionais e locais pudessem se constituir em aliados, é um processo comum na expansão capitalista.” (MITO, 2012, p.28-29).



Não é de se espantar que as comunidades tradicionais desta região sofrerem com impactos e injustiças ambientais oriundas do Racismo Ambiental. Estas comunidades sofrem diretamente de forma negativa com as consequências da expansão imobiliária, concentração fundiária e valorização capitalista da terra e água, que os tem expulsado dos seus territórios tradicionalmente ocupados. Enquanto os pescadores e quilombolas vêm o espaço dos territórios como de sustentabilidade da família e da própria comunidade, os empreendedores vêm os mesmos espaços com o olhar do capital, tendo em vista lucros e exploração, agredindo o meio ambiente (rio, manguezais, ilhotas, ilhas etc.). Neste processo de disputa de territórios, as comunidades são consideradas atrasadas e entraves para o dito desenvolvimento.
O direito de permanência nos territórios tradicionais pesqueiros e quilombolas são negados, considerados como espaços vazios, e apropriados pelos grandes empreendimentos empresariais, latifúndios, especuladores de terras, turismo empresarial, dentre outros empreendimentos destruidores dos meios de subsistência dos quilombolas e pescadores. A apropriação destes espaços dos territórios se dá de forma ilegal e com a conivência do Estado Brasileiro, que incentiva por meio de investimentos com recursos públicos e entrada do capital estrangeiro, inclusive utilizando como discurso a ideia de que as áreas ocupadas pelas comunidades são livres para compras e instalações dos megaprojetos turísticos. Estas estratégias fazem parte da política de privatização das terras e águas e dos espaços tradicionalmente ocupados por estas comunidades. Como nos afirma o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais na sua cartilha de trabalho de base:


“O modelo de desenvolvimento imposto a sociedade brasileira em especial o implementado pelo PAC - Programa de Aceleração do Crescimento -, de muitas maneiras vem destruindo o patrimônio histórico, social, cultural, ambiental e econômico das comunidades. Por meio da implantação de grandes projetos está causando nas comunidades sérios conflitos, exclusão, empobrecimento e a destruição indiscriminada do meio ambiente.” (CARTILHA PARA TRABALHO DE BASE DA CAMPANHA PELO TERRITÓRIO PESQUEIRO, 2011, p.08).


Percebe-se diante dos conflitos existentes nas comunidades tradicionais quilombola e pesqueira e das falas das lideranças da articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, a importância e a necessidade dos sujeitos (quilombolas e pescadores) se organizarem e se articularem em defesa dos seus territórios e expor as suas demandas materiais e simbólicas. Tais demandas são transformadas em signos e representações simbólicas através da tradução de seus significados em políticas de cidadania, quando são construídas pautas de reivindicações ou transformações a nível social das situações existentes. A organização interna entre os seus pares nas comunidades é articulada em associações e movimentos sociais para defesa e segurança dos direitos sobre os seus territórios e pela possibilidade de continuarem com as suas atividades e se reproduzirem socioculturalmente. As articulações em redes de movimentos sociais são, então, construídas com grupos que têm a mesma identidade social e politica, na perspectiva de unir forças para construírem, de forma coletiva, estratégias de enfrentamento à primazia do mercado sobre os direitos humanos, que é a principal causa da desigualdade, da discriminação e degradação ambiental.
Percebe-se na Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé a criação de um movimento que se diferencia das estratégias dos movimentos tradicionais “revolucionários”, transitando de política “uni-identitária” (pescador ou quilombola), para politicas discursivas de uma maior diversidade (raça, gênero, classe, geracional), atuando nas formas interorganizacionais através da troca de saberes. Neste processo, as fronteiras simbólicas e territoriais são extrapoladas, construindo modelos discursivos e de ações politicas baseadas em estruturas de identificações múltiplas, e formas de organização pautadas em identificações híbridas e em formas discursivas múltiplas. Através destas estratégias e condição criam-se tensões e ambiguidades no interior do movimento e das redes por um lado, mas, por outro, constroem espaços favoráveis para a construção de alteridade intersujeitos e para práticas democráticas e democratizantes.
Conclui-se então que, além de ser um espaço de luta, intercâmbio e formação política do Movimento de Pescadores e Pescadoras e do Conselho Pastoral da Pesca, a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé é um espaço onde as comunidades refletem sobre a conjuntura e traçam estratégias de luta em defesa dos seus territórios, direitos e politicas públicas. É espaço de estratégia de ação coletiva, baseada numa cultura solidária, cooperativa, horizontalizada e mais democrática, para uma nova forma de organização da sociedade. Para tanto, utiliza se da estratégia de aliança com outros grupos e se articulam em redes de movimentos sociais. Pois as redes aproximam e criam espaços interorganizacionais de trocas simbólicas e materiais entre os sujeitos políticos, permitindo desenvolver o processo de mobilizações de forma articulada, com visibilidade e impactos midiáticos para além do espaço local.


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[i] Samyr Uhuru,Militante do Akofena, Bacharel em Ciências Sociais pela UFRB, Pós-Graduando em Estado e Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais da UFBA,
 





















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