sexta-feira, 31 de março de 2017


Memórias da África em ferro: A mensagem subliminar esculpida em antigos portões

Por: Jéssica Cerqueira, da AfroeducAÇÃO

Ao falarmos da construção do país, sempre lembramos que, em sua base, estão os colonizadores portugueses, os povos africanos escravizados e a população indígena que aqui vivia e que esta população originária foi praticamente exterminada na sua totalidade, sobrando uma pequena porcentagem destes povos que, hoje, lutam pela demarcação de suas terras, pelo respeito a sua história e pela preservação de sua cultura.
Já os povos africanos, trazidos como objetos, escravizados, não apenas por uma escolha racial que era compreendida como inferior, mas também por uma escolha econômica, pois estes representavam uma mão de obra que possuía conhecimentos sobre tecnologias para construções e agriculturas, mas que, em um plano genocida e exploratório, tiveram suas histórias, afetos, famílias, línguas e religião também exterminados.
Durante os anos escolares, ao tratar sobre os períodos coloniais, a arquitetura, o desenvolvimento das cidades, sempre é levado em conta, nos materiais pedagógicos, a participação dos colonizadores portugueses por terem trazido referências e modelos europeus, ignorando inteiramente a participação dos povos africanos e seus descendentes escravizados que foram, a todo momento, a verdadeira mão de obra nestas construções, mas como já citado, com a identidade atribuída por conotações inferiores, não mereciam ter suas memórias valorizadas por estes feitos.
A população negra escravizada atuou firmemente pela sua libertação, porém quando essa possibilidade ainda parecia irreal, sua resistência sempre foi algo nítido entre os escravizados, que ao ter sua força de trabalho e seus corpos submetidos ao trabalho forçado e a violência, usou de suas memórias e raízes na realização destes trabalhos, tornando-os um espaço de resistência, como, por exemplo, os africanos ferreiros que esculpiram em seu trabalho símbolos de resistência, como uma variação de um ideograma adrinkra, o “sankofa”.
Sankofa é um pássaro africano de duas cabeças que, segundo a filosofia do povo Akan, significa “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”. Em outras palavras, podemos ler como o retorno ao passado para ressignificar o presente. Este símbolo faz parte de um conjunto ideográfico, o adrinkra, que o povo da antiga Costa do Ouro (atual Gana), o povo Akan, concebeu, e que posteriormente, se espalhou pelo Togo, Costa do Marfim e países da África Ocidental. Este é um dos exemplos mais conhecidos da resistência esculpida em ferro que os colonizadores até então não entendiam o significado daquele símbolo, mas que todos aqueles, vindos do continente africano, o identificavam como uma simbologia de luta, de resistência e de preservação de suas histórias.
Estas memórias estão expostas a todo momento nos grandes portões dos bairros, mas principalmente nos portões dos grandes edifícios das capitais do país, que saúdam todos aqueles que descendem desta população escravizada, mas que não é de compreensão da grande população, assim como não era dos colonizadores nos tempos passados. Além de toda arte produzida, esculpida e talhada a mão que levam títulos europeus, mas que todos os contornos e detalhes levam a mão de obra e o traçado de povos africanos. Uma verdadeira desvinculação da arte e do serviço braçal, a negação das potencialidades, sub julgamento dos feitos e a escrita do “vencedor” que renega qualquer memória ao povo escravizado.
Uma reflexão sobre os territórios comuns é, ao olhar para as construções da sua cidade, aquelas mais antigas, como museus, prédios públicos, com variados estilos coloniais, buscar identificar seu ano de construção, e se perguntar, quantas mãos negras trabalharam ali? Quais traços estão impressos nestas construções? Já passou da hora de olharmos para estes símbolos europeus tendo o olhar baseado nas mãos de quem os construiu, afinal todos fazem parte desta etapa da história, cada um com seu papel. Os escravizados não eram apenas corpos negros, eram formas de luta e de resistência a todo o momento.
Lembre-se, ao ver um símbolo do Sankofa, que nunca é tarde para buscar a verdadeira história!

SANKOFA