sexta-feira, 26 de junho de 2015

CONFLITO ENTRE OS (AS) QUE CONVIVEM EM MEIO AOS CONFLITOS



Este ensaio textual reporta-se a descrever uma breve reflexão sobre as intempéries que foram submetidas ao povo negro no Brasil. Estas ações, a meu ver, produziram conflitos, que perpassaram por conjunturas históricas, sociais e culturais, correspondendo, consequentemente, em algumas causas no desenvolvimento da coletividade, além de, agir de modo destrutivo com efeitos danosos na afirmação da identidade, realidade, interação, e etc. do povo negro.
Neste âmbito, o texto revela em si, um conteúdo direto, não distante do que foi e é [re]produzido contra nós negros (as). De fato, sua linguagem é fria e dura, advinda do entrelaçamento do arcabouço de vivencias reais e concretas, extraídas das “quebradas”. Por isso que, mesmo que o texto aborde reflexões não aprofundadas, a contextualização de sua problemática relata de forma dinâmica, precisa e elucidativa, uma escrita afiada, amadurecida, bem como, esdruxula – “mandigueiramente” falando –, para deflagrar críticas contundentes e compromissadas.
Bem, de onde eu falo? Do meu lugar! Mas, qual o meu lugar mesmo? O meu lugar define-se socialmente como o do excluído, invisibilizado, estereotipado, enclausurado, o do pensando como o não-ser, e etc. E deste lugar, posiciono-me de modo crítico, atuante, e ativamente reflexivo como sujeito orquestrado com as consequências sócio históricas. Percebe-se, por isso, que a compreensão dos elementos estruturais que circundam a realidade dos que sobrevivem nas coesões destrutivas, pode ser à possibilidade de mudança para reescrever outros contornos diante das circunstâncias trágicas.
A condição existencial conflituosa do (a) negro (a) aos olhos do opressor é o lugar do subalterno silenciado. O subalternizado necessita ser representado por esta nesta condição, ocupando o lugar de não-ser, do sujeito que é sujeitado a ser objeto. Mas não estou falando de qualquer objeto. Este se enquadra à vista do opressor enquanto objeto híbrido, ou seja, modificado, sendo somente reconhecido e percebido como objeto, que pode ser manipulado, pensado, moldado e adestrado a seguir regras de doutrinação. A posição de subalternizado incorpora a uma lógica que promove a falta de confiança no desenvolvimento da personalidade individual e/ou coletiva, que revela em situações de invisibilidade e não reconhecimento no convívio com a dominação do opressor.
Diante disso, é válido afirmar que o lugar do (a) negro (a) torna-se o do conflito, pois diante do quadro antagônico, nas convergências de forças contra o branco, como não se perceber neste lugar, se historicamente, somos coagidos (as), condicionados (as) a ser pertencente de um lugar sem sentido.
É um fato que, historicamente o povo negro foi e é perseguido. Não precisa conecta-se abstratamente para perceber ou assimilar a veracidade dessa premissa, pois ao enveredar pelas estatísticas do Mapa da Violência ou até mesmo nas periferias do Brasil compreenderás tal afirmação. Sendo assim, contestarás que, não foi e não é atoa que somos a população mais pobre do mundo. Que a nossa condição social é o elemento estratégico para a supremacia branca e como massa de manobra nas operações de extermínio.
Assim como os (as) negros (as) africanos (as) foram arrancados (as), sequestrados (as) violentamente pelos europeus de suas terras natais, a adaptação com o tempo tornou-se necessária para reconstituir e restaurar as forças, pois assim como uma planta que sofre com as mudanças na sua estrutura física pelo transplante para outro terreno, o (a) negro (a) coagido (a) a esta situação, só restava lutar pela vida, pela liberdade.
Sobrevivemos em meio às adversidades de fenômenos sociais, políticos, culturais e históricos que contribuíram para nos colocar no lugar de destaque na subalternização e seleção social, cujo aparato mórbido, resultou consequentemente nos conflitos internos e externos do nosso povo.
E para nós, lutar pela sobrevivência, se manter vivo, torna-se quase uma regra, torna-se fator primordial de resistência, ou como disse Mano Brown “temos que ser duas vezes melhor!” E malandramente sobrevivemos nas vielas da vida, construindo elementos alternativos, contra hegemônicos para reagir conforme o que a realidade apresenta. Por isso, que incorporamos na maioria das vezes outros modos de estruturar diretrizes ríspidas, contundentes e condizentes na construção de outras perspectivas de vida, que possibilitem outras percepções de mundo.
As violências ocorridas continuam sendo pautadas como ações que retiram as pessoas de experienciar as relações reais da vida, colocando-as como figurantes no espetáculo produzidos pela negligência do Estado. A violência que está sendo produzida por este inimigo do povo negro, é invisibilizada pela camuflagem de interesses múltiplos, que velam o real sentido por trás de cada ato que se apresenta.
Pela estrutura histórica que estamos envolvidos, inseridos, implantaram facilmente o sentido de que o inimigo do preto é o outro preto, é o que? É isso mesmo! O preto que se torna inimigo do outro, é o mesmo que sofre com as mesmas mazelas sociais do seu vizinho ao lado, da frente, do bairro oposto, de outro estado, de outro continente. Essa semente germinou de modo estratégico, de modo, que não percebamos qual é nosso inimigo em comum. Uma coisa é certa, o meu inimigo, não mora onde eu moro, muito menos divide as mesmas dores que meu povo, a “fantada” aqui meu irmão sempre teve um gosto amargo!
O nosso inimigo sempre veio em nossas “quebradas” disfarçado de “bons interesses”, carregados de “boas intenções” incorporado com o espirito de "papai noel". Então como posso desconfiar de quem sempre me desejou bem, me concedendo bens? Ele é um ser bom! Apôs meu chapa, este deve ser o primeiro que devemos desconfiar!
Foi e é tudo pensado, o nosso inimigo, age mais ou menos desse modo, primeiro nos coloca nas piores situações sociais, depois como quem não quer nada “presenteia-nos” dos diversos modos, inventam outro tipo de inimigo folclórico, como por exemplo, o traficante. Este figura tem uma característica similar nas “quebradas”, quase sempre preto, anda largado, tatuagem no corpo, comunica-se com um dialeto local, de roupa largada, mas espera aí, de onde venho a maioria dos jovens andam assim! Então, são todos traficantes, estes que trazem o mal para sociedade, precisamos agir contra eles, olha o “presente de grego” novamente, vai vendo mais um espetáculo, constrói-se mais uma Unidade de Polícia Pacificadora - UPP.
Não adianta, a “violência” torna-se um símbolo para descrever o que as pessoas estão sendo, e apresenta-se enquanto espetáculo que envolve os mais afetados pelo show cotidiano, num âmbito circular que os condiciona a prisões por ações exteriores. Então, enquanto nos posicionarmos como impossibilitados de mudar o fator da violência, deixando os “fardados”, os “armados”, os “engravatados” e “entes abstratos” resolverem os nossos “problemas”, não se construirá novos caminhos emancipatórios e estaremos sempre presos a uma condição subalterna, e alheia.
Vivemos em meios aos conflitos, ou melhor, sobrevivemos por eles e entre eles seja nas periferias, no centro, nas universidades, nos cargos ditos de importância social, não importa, o nosso modo lutar, de ser, de pensar, de perceber o mundo ao nosso redor é diferente, e sendo diferente a reprodução deste mundo na prática também será diferente de quem sempre teve os privilégios.
Assim como, pela nossa ocupação as periferias do Brasil tornou-se característica de pobreza, o extermínio de jovens, especificamente, mas não exclusivamente na Bahia, é sinônimo de preto. Entendido o recado, então mãos a obra, pois todos os espaços que nós ocupamos tem que sempre ser pensado, e potencialmente tido como estratégico para promover nosso modo de pensar, de atuar, de escrever nossa história.
Então, não adianta reclamar que a escola pública é péssima, enquanto ela for para pobre e preto ela não vai ser diferente. Não adianta reclamar, pois para nós que sobrevivemos em meios aos conflitos, a tarefa é diária, eles não vão dar nenhum espaço que não seja o do subalternizado. Desde outrora reivindicamos por reparações, nossas pautas de luta ultrapassa gerações, da mesma medida que os estragos cometidos com o nosso povo.
A missão já foi dada quando nascemos, quando nós decidimos ser negros (as), você traz consigo a marca de guerreiros (as), transforme seu modo de pensar em instrumento de luta, a sua voz numa arma de emancipação, de resistência, de vida.


Falado do meu lugar, e que lugar! Nós por Nós sempre...

Por: Manoel Alves de Aujo Neto - Uh Neto  - Irmandade Sankofa

terça-feira, 9 de junho de 2015

REBELIÃO RACIAL E MASSACRE NA TERRA DE LUCAS DA FEIRA

Nas masmorras, entre grades e as escabioses,
tuberculoses e abandono, prisioneiros somam
 em suas marcas o estigma de explodir essa cidade,
 e morrem encarcerados sem nenhum protesto. 
 Hamilton Borges Walê,
Fragmentos de uma teoria geral do Fracasso[1].


Feira de Santana é uma cidade quente e encharcada de sangue negro, uma cidadela do racismo apelidada como Princesinha por uma aristocracia falida branco-sertanejo. Nessa terra hostil, os negros são caçados, capturados e abatidos como cães. O delito é o mesmo de 127 anos atrás: a cor da pele, o tamanho do nariz, os Deuses que honrosamente e humildemente carregamos em nosso Ôri. Toda essa violência racial acumulada do mundo escravagista transfigurou-se nesse grande purgatório neocolonial, em que segregação racial urbana, altas taxas de homicídio contra jovens negros, brutalidade policial endêmica e um dos maiores índices de mortes por “negligencia” hospitalar do Brasil tornam Feira de Santana peça chave no processo de interiorização do Genocídio Negro.
É nesse cenário de rebelião racial e massacre que está instalado o Conjunto Penal Regional de Feira de Santana, que no último domingo (24\05\2015) entrou para história recente dos massacres no Brasil, depois de ser a arena de uma rebelião que terminou com dez detentos mortos[2] e cinco feridos gravemente[3]. Uma matança sem precedentes nos últimos 20 anos do sistema penitenciário baiano.
 Como todo presídio no Brasil e no mundo, o conjunto penal de Feira de Santana é uma bomba relógio com explosão programada pelo Estado. Com capacidade para abrigar 600 internos, tem quase 2 mil. Só no pavilhão X, 638  internos ocupam 38 celas, em condições sub-humanas de alojamento, higiene e alimentação. Atrele todos esses ingredientes à índole sádica do Governador Rui Costa e da cúpula da Secretaria de Segurança Pública da Bahia, que mantém no mesmo bloco dois grupos de presos historicamente rivais, armando-os com revólveres, pistolas e facões: temos um massacre fratricida orquestrado com precisão cirúrgica Lynchiniana.
A desgraça coletiva do conjunto penal regional de Feira de Santana não é uma situação excepcional, mas sim um fragmento de uma realidade nacional. Segundo dados subnotificados do Sistema de Informação Penitenciaria (2011), o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 600 mil detentos\as. A cada 100 mil brasileiros 288 estão encarcerados, sendo que 70% desses detentos foram detidos por crimes contra o patrimônio e porte de entorpecentes. A massa carcerária tem cor, endereço e escolaridade. Mais de 70% da população intramuros é constituída de negros\as. Em sua maioria quase absoluta não possuem nem mesmo o ensino médio. Um dado particularmente alarmante é que mais de 70% são presos de caráter provisório, ou seja, não foram nem mesmo julgados pelo sistema judiciário.
Em 10 anos de luta organizada Contra o Genocídio Negro estivemos atuantes em penitenciárias da Bahia que nunca receberam a presença ilustre de um Secretário de Segurança Pública ou Governador. Nós conhecemos as entranhas e submundo pulsante do sistema prisional baiano. Já passamos por rebeliões, motins, greves de fome, protestos silenciosos, sabotagens. Paralisamos ruas e avenidas em frente de penitenciárias exigindo o fim dos dispositivos de controle racial, leia-se: Revista Vexatória e o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)[4].  Entretanto, foi nesse território de constante repressão e violência racial que construímos uma de nossas mais poderosas células organizativas: a Associação de Familiares de Amigos\as de Presos\as da Bahia (ASFAP), um núcleo de base coordenado e liderado hegemonicamente por mulheres negras que há anos tem defendido o postulado político do abolicionismo penal, não em seminários pomposos com “ativistas” afro-intelectuais de meia pataca, mas sim, no interior do sistema penitenciário baiano, forjando e formulando nossa Plataforma Insurrecional Intramuros. Se todo detento negro é um preso político, o seu direito de livre organização tem que ser defendido.
Nesse contexto não é de nenhum alarde que nossa organização é irrestritamente solidária aos familiares dos presos assassinados no Massacre no Pavilhão X.  Também cabe ser declarado que nos solidarizamos com os presos, familiares e amigos que passaram momentos de terrorismo racial durante a rebelião, com a ameaça constante da SSP-BA soltar seus cães raivosos fardados contra os detentos amotinados, que foram acusados e julgados pela mídia de rapina como sequestradores. Quem conhece a cultura política carcerária sabe que não houve sequestro de parentes. Os familiares permaneceram dentro da casa correcional como estratégia comunitária de autodefesa para frear uma investida da polícia militar, que não tinha o mínimo interesse em  negociar uma “rendição”, mas sim, executar o máximo possível de detentos e depois colocar na conta das “Facções”.
O massacre no pavilhão X, com cabeças decapitadas, lençol no telhado com o CNPJ da firma e armamento de autocalibre, que, como é obvio, não entrou na grade pela genitália de uma mulher, evidencia bem mais do que os discursos morais religiosos e a Tese dos “Bons e maus meninos”, vomitados pelas redes sociais e mídia de rapina.  Diante de um padrão de governabilidade alicerçado na morte de negros\as, em que, apenas na gestão do Secretário de Segurança Pública Maurício Telles Barbosa, 25 mil  pessoas foram assassinadas, em média 15 homicídios por dia[5], sem contar as mais de 17 chacinas que vieram a público, como é o caso da Matança do Cabula.  Esses números, que como sabemos são subnotificados, não dão conta da dimensão real do Genocídio de Negros na Bahia, mas nos traz indícios para entender que o massacre na penitenciária estadual de Feira de Santana é uma peça nessa engenharia estatal da morte Negra, em que o Estado é o responsável direto, como dissemos anteriormente, essas armas não entraram na carceragem pela genitália de uma mulher.
Feira de Santana continua sendo uma cidade colonial incendiada secularmente por rebeliões e massacres.  Cabe retomarmos que foi nesse território hostil aos negros\as que viveu e morreu Lucas Evangelista dos Santos, o Lucas da Feira, como ficou mundialmente conhecido. Um homem preto revoltado, desobediente, indigesto, brigão, mandão, violento, cruel, vida Loka, contraditório. Não estamos falando de banditismo social, cangaço urbano ou de símbolo da luta por “Promoção da Igualdade Racial”. Lucas da Feira era gente ruim mesmo, periculoso, um menino mau.  Talvez por esses motivos, ou tão somente, no ano de 1828 pinotou da fazenda de seu antigo Senhor. Na fuga e pistoleiragem trombou com outros pretos\as revoltados e juntos lideraram por cerca de vinte anos uma rebelião racial permanente que levou o terror à aristocracia falida sertaneja. Até mesmo o Governador da Província da Bahia na época cabrerou e estipulou um prêmio de quatro mil reis pela captura e morte do Bando.
 Lucas da Feira foi capturado, aprisionado, executado e esquartejado em praça pública em 25 de setembro de 1849. Um criminoso que cometeu o delito de conquistar sua liberdade no cano de uma espingarda, no corte do facão, na marra, com violência e sem concessões. A Rebelião e Massacre no pavilhão X não pode ser deslocada dessa história de luta radical negra.

Professor Fred Aganju
Articulador da Campanha Reaja ou Seré Morta\o
Maio de 2015

TODO DETENTO\A NEGRO\A É UM PRESO POLÍTICO. COMO TAL, TEM DIREITO A LIVRE ORGANIZAÇÃO, SEM RESSALVAS.
  

[1] Ver na íntegra em: http://hamiltonbwale.blogspot.com.br/2010/03/continuamos-entrincheirados-3-anos-da.html
[2] Os detentos assassinados foram Silas da Silva, decapitado, residia no bairro Rocinha; Haroldo de Jesus Brito, da Rua Nova; Alisson Rodrigues Oliveira, do Conjunto Feira VII; Juliel Pereira dos Santos, do George Américo; Israel de Jesus Santos; Luiz Paulo de Souza Alencar; além do detento identificado apenas como Júnior.
[3] Os detentos feridos foram Dioclécio Aureliano dos Santos, Davi Pires Almeida Fernandes, Anderson Clayton Silva Nascimento, Iago de Jesus dos Santos e Luiz dos Santos Almeida.
[4] Isolamento total do detento, com apenas duas horas de banho de sol por semana, privação de sono, tortura física e psicológica, além da proibição de qualquer tipo de visita. O mesmo tratamento dado a “terroristas” por parte dos EUA na base naval de Guantanamo.
[5] Esses dados foram divulgados recentemente pela mídia e notificados a partir do cruzamento de dados usando informações do DataSUS, Mapa da Violência, Anuário da Segurança Pública, e os próprios boletins da Secretaria de Segurança Pública. Ver em: http://www.aratuonline.com.br/blogdepabloreis/2015/05/19/gestao-do-atual-secretario-da-ssp-ultrapassa-25-mil-homicidos-15-baianos-mortos-por-dia/